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Artigo: Eduardo Leite e a hora dos culpados

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Míriam Santini de Abreu*

“Não é hora de procurar culpados”, afirmou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, em coletiva de imprensa no domingo, dia 5, ao lado de Lula e representante do poder legislativo, quando foram anunciadas medidas frente à catástrofe que se abate sobre o estado vizinho (1). O artigo explora elementos para compreender a voracidade do capital imobiliário, o papel de prefeitos e governadores e o que a mídia tem a ver com isso, para quando chegar a hora dos culpados (chegará?).

O resgate de um cavalo caramelo ilhado sobre um telhado virou símbolo da conta que o Rio Grande está pagando por décadas de descuido planejado contra a natureza. Mas há outro símbolo tão ou mais potente. Ele aparece em uma notícia publicada no site da Prefeitura de Porto Alegre. É uma foto (abaixo) que exibe 11 rostos sorridentes, entre eles o de Leite, do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, e do vice, Ricardo Gomes, no leilão da Bolsa de Valores de São Paulo ocorrido em 6 de fevereiro passado que confirmou investimento de R$ 350 milhões no Cais Mauá graças a uma parceria-público-privada (PPP) (2). A palavra que define o empreendimento é bem conhecida em Florianópolis, “revitalização”, e o projeto, também na foto abaixo, não é diferente das banalidades construtivas vendidas no litoral catarinense como excepcionalidades quando excepcional mesmo é a paisagem agora irreconhecível e prestes a ser privatizada. A imagem do projeto está em uma reportagem do Portal G1-RS publicada no final de 2021 saudando a iniciativa (3). O “Coletivo Cais Cultural Já” lançou nota criticando o leilão do Cais do Porto, defendendo proposta alternativa de promoção de atividades culturais sem necessidade de privatização da área (4). 

Fotografia de Mateus Raugust/PMPA

Lá em 2019, um artigo de Opinião no GZH assinado pelo arquiteto Anthony Ling, editor do site Caos Planejado, clamava: “Prefeito, derrube o muro da Mauá!” (5). Vale citar um trecho: “O risco que deve se levar em consideração é de uma lâmina de centímetros de água a cada meio século, dado que a chance de uma enchente como a de 1941 é de uma vez a cada 1,500 anos. Atingir a altura ainda maior do atual Muro da Mauá é próximo do impossível”. 

O muro da Mauá integra o sistema de proteção de Porto Alegre e foi construído depois da grande enchente de 1941. Várias reportagens nos últimos dias mostraram falhas no sistema, as quais, neste triste maio de 2024, pioraram a situação de Porto Alegre (6).

O papel da administração de Leite e Melo na catástrofe ainda está por ser contado, mas boas pistas aparecem em notícias no site da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que completou 50 anos em 2021. Uma delas teve repercussão no combativo veículo de mídia independente Sul21, mostrando, por exemplo, que no primeiro mandato, em 2020, Leite aprovou na Assembleia Legislativa a Lei 15.434, chamada de “Novo Código Estadual do Meio Ambiente”, suprimindo ou flexibilizando mais de 500 artigos e incisos do Código Estadual criado em 2000 e afrouxando regras de proteção ambiental dos biomas Pampa e Mata Atlântica (7). Essa é apenas uma das medidas do governador citadas na reportagem, todas com alto potencial de impacto ambiental negativo no estado. 

É neste quadro que deve ser lida a notícia no GZH segundo a qual empresários sugeriram a Leite buscar especialista em catástrofes para ajudar na reconstrução do estado (8). Segundo a notícia, tal especialista seria pessoa ou empresa, sendo citado o exemplo da reconstrução de New Orleans, nos Estados Unidos, depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. Caso a ideia avance, sugeriram os empresários, seria constituída uma parceria público-privada (PPP) para executar o projeto, além de usar os recursos federais prometidos (8). Isso em um estado com várias universidades federais onde se acumulam pesquisas fundamentais para sinalizar outro caminho de reconstrução das cidades. Mas tragédias deste alcance sempre rendem grandes negócios e grandes parcerias.

Nos últimos dias, na maior parte da cobertura jornalística da mídia hegemônica, a que chega à maioria da população, a lógica operada é aquela apontada por Perseu Abramo em seu clássico texto “Padrões de manipulação na grande imprensa” (9):

1-Padrão de ocultação –um deliberado silêncio sobre determinados fatos da realidade.

2-Padrão de fragmentação – o todo real é estilhaçado, despedaçado, fragmentado em milhões de minúsculos fatos particularizados, na maior parte dos casos desconectados entre si, despojados de seus vínculos com o geral, desligados de seus antecedentes e de seus consequentes no processo em que ocorrem, ou reconectados e revinculados de forma arbitrária e que não corresponde aos vínculos reais, mas a outros ficcionais, e artificialmente inventados.

3-Padrão da inversão – fragmentado o fato em aspectos particulares, todos eles descontextualizados, esse padrão opera o reordenamento das partes, a troca de lugares e de importância dessas partes, a substituição de umas por outras e prossegue, assim, com a destruição da realidade original e a criação artificial da outra realidade.

4-Padrão da indução – a hábil combinação dos casos, dos momentos, das formas e dos graus de distorção da realidade submete, no geral e no seu conjunto, a população à condição de ser excluída da possibilidade de ver e compreender a realidade real e a consumir uma outra realidade, artificialmente inventada.

Segundo Abramo, o jornalismo de radiodifusão (TV e rádio) adota ainda um padrão que se divide em três momentos básicos, como se fossem três atos de um espetáculo, de um jogo de cena:

1 – O Primeiro Momento, ou 1ª Ato, é o da Exposição do Fato. Submetido a todos os padrões gerais de manipulação, o fato é apresentado sob os seus ângulos menos racionais e mais emocionais, mais espetaculares e mais sensacionalistas. 

2 – O Segundo Momento, ou 2º Ato, é o da Sociedade Fala. As imagens e sons mostram detalhes e particulares, principalmente dos personagens envolvidos. Eles apresentam seus testemunhos, suas dores e alegrias, seus apoios e críticas, suas queixas e propostas.

3 – O Terceiro Momento, ou 3º Ato, é o da Autoridade Resolve. Se se trata de um fato “natural” (incêndio, tempestade, enchente), a autoridade anuncia as providências, isto é, as soluções já tomadas ou prestes a serem tomadas. Se se trata de fato social, a autoridade reprime o Mal e enaltece o Bem, e também anuncia as soluções já tomadas ou a tomar para as duas situações. Ou seja, tudo está se resolvendo. Não é preciso mudar o rumo.

Na atual enxurrada informativa sobre o horror no Rio Grande do Sul, raros e de baixa visibilidade e audiência serão os veículos a ligar os pontos para mostrar que a catástrofe não é “natural”. 

Tomara que os movimentos populares e sindicais do Rio Grande do Sul elaborem e distribuam aos milhares materiais impressos ligando os pontos e rompendo a lógica dos padrões apontados por Abramo. Não adianta desvendar esses fatos na internet. Como aconteceu com o Orkut, todas as postagens hoje fundamentais para compreender a catástrofe um dia virarão pó de algoritmos. A lembrança será a da Fúria da Natureza, e não a lembrança da Fúria dos que a destroem.

É nesse sentido que Eduardo Leite está certo. Não é preciso procurar os culpados.

Links: 

1-https://www.cartacapital.com.br/politica/nao-e-hora-de-procurar-culpados-pela-tragedia-no-rio-grande-do-sul-diz-eduardo-leite/

2-https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/leilao-confirma-investimento-de-r-350-milhoes-no-cais-maua

3-https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2021/11/25/projeto-de-revitalizacao-do-cais-maua-e-apresentado-em-porto-alegre-veja-imagens.ghtml

4-https://www.brasildefators.com.br/2024/02/09/coletivos-lancam-nota-criticando-o-leilao-do-cais-maua-de-porto-alegre

5-https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2019/04/prefeito-derrube-o-muro-da-maua-cjux1bhv0012501ro08y91nga.html

6-https://www.brasildefato.com.br/2024/05/06/falhas-na-manutencao-do-sistema-de-protecao-teriam-agravado-a-maior-inundacao-da-historia-de-porto-alegre

7-https://sul21.com.br/noticias/meio-ambiente/2024/05/tragedia-historica-expoe-o-quanto-governo-leite-ignora-alertas-e-atropela-politica-ambiental/

8-https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/marta-sfredo/noticia/2024/05/empresarios-sugerem-a-leite-buscar-especialista-em-catastrofes-para-ajudar-na-reconstrucao-do-rs-clvx2qjbt00e8011ht8q0yk5w.html

9-https://biblioteca.clacso.edu.ar/Brasil/fpa/20170912055155/pdf_1475.pdf

Reproduzido com autorização da autora, Miriam Santini de Abreu, editora do blog Jornalismo e Cidade (link) editado em Florianópolis, SC. Fonte: https://jornalismoecidade.blogspot.com/2024/05/eduardo-leite-esta-certo.html

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