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Artigo: A Enchente de 2024

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Pouco caso com mudança do clima e governança ambiental débil turbinaram a maior catástrofe hídrica da história do Rio Grande do Sul.

Por Roberto Villar Belmonte*

– Tu estás bem, já teve que sair de casa? – perguntou a professora Sandra Henriques em áudio que recebi no WhatsApp no domingo, 5 de maio, às 10h30. Ela tinha trabalhado até tarde nos ajustes de um aplicativo que estava desenvolvendo com outros colegas do Centro Universitário Ritter dos Reis para auxiliar no resgate de pessoas ilhadas na zona norte da capital e em municípios da região metropolitana. Estávamos nos primeiros dias da maior catástrofe hídrica da história do Rio Grande do Sul.

A governança ambiental estadual, cuja prioridade tem sido viabilizar sem burocracia licenças para empreendimentos, não estava preparada para lidar com o que aconteceu. Meio ambiente é visto historicamente como entrave ao desenvolvimento e, por isso, mudança do clima nunca foi prioridade de fato. Para piorar a situação, o sistema formado por diques e casas de bomba que protege Porto Alegre falhou. Por várias gestões fala-se em plano de mitigação e adaptação na cidade, sem avanços significativos.  

“Parte do Rio Grande do Sul é atingido por chuvas persistentes e volumosas desde a segunda-feira (29/04). Em algumas áreas, especialmente na ampla faixa central dos vales, encosta da serra e metropolitana, os volumes de chuva chegaram a passar dos 150 milímetros (mm) em 24h”, informou o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) no dia 30 de abril. As chuvas continuaram intensas durante a semana. Dias 2 e 3 de maio, as aulas tiveram que ser remotas. Até serem suspensas por três semanas.

Impactos do desastre hidrológico

  • Municípios afetados: 478 (de 497)
  • Pessoas afetadas: 2.398.255
  • Pessoas desalojadas: 423.486
  • Pessoas em abrigos: 18.854
  • Feridos: 806
  • Óbitos confirmados: 173
  • Desaparecidos: 38
  • Pessoas resgatadas pelas forças de segurança do Estado: 77.875
  • Animais resgatados: 12.543

Fonte: Balanço das enchentes no RS – 9/6

Moro há quase dois anos nas primeiras quadras da avenida Getúlio Vargas, no bairro Menino Deus, bem perto da Cidade Baixa. Monitorava de perto o avanço do Lago Guaíba pela vizinhança, pois minha casa estava dentro da mancha de inundação prevista por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Na sexta-feira, 3 de maio, antes da aula remota da noite, fui conferir a pé a altura da água na Orla. A pista de skate já estava tomada, e parte da avenida Praia de Belas também.

A água estava avançando bairro adentro pelo esgoto pluvial. Na volta para casa, encontrei uma tilápia nadando na sarjeta bem na esquina da rua André Belo com a avenida Praia de Belas. Incrédulo, gravei um vídeo e postei nos meus stories. A imagem rapidamente viralizou. Dias depois, muitos peixes foram vistos. No dia 7 de maio, até um jacaré foi avistado nas primeiras quadras da Getúlio Vargas, onde a água do Lago Guaíba alcançou inacreditáveis dois metros no meio da rua.

Mas no domingo, 5 de maio, quando a professora Sandra me perguntou se eu já tinha saído de casa, o nível da água parecia estável, apesar do peixe que encontrei nadando na sarjeta. Como eu ainda estava com luz ligada e internet funcionando, tranquilizei minha colega. Segui atento às notícias e ao que acontecia na vizinhança. Naquele final de tarde, os primeiros vizinhos começaram a sair do prédio. Dormi com medo. Assim que acordei decidi levar meu pai para o apartamento da família no litoral norte.

Eu já tinha passado todo o final de semana levantando livros e roupas. Aproveitei a manhã de segunda-feira (6/5) para arrumar três malas e duas mochilas. Busquei meu pai nas redondezas e quando cheguei perto de casa, por volta das 13h, as primeiras quadras da avenida Getúlio Vargas eram inundadas rapidamente porque desligaram a energia de uma das casas de bomba. Na calçada na frente do prédio, a água já batia no joelho. Por pouco consegui pegar a bagagem e sair com o carro.

Na mesma nota do dia 30 de abril, o INMET explicou que o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda tinha influência do El Niño. “O fenômeno responsável por aquecer as águas do Pacífico ajuda a bloquear as frentes frias e concentrar os sistemas de áreas de instabilidade na altura do Rio Grande do Sul causando a chuva mais intensa em parte do estado gaúcho e sul de Santa Catarina desde o último sábado (27/04).” A quantidade de água que caiu em maio foi inédita.

MunicípiosTotal de chuva
Maio 2024 (mm)
Média – Normal Climatológica Maio (mm)
Caxias do Sul854,3131,4
Santa Maria617,1136,6
Bom Jesus556,4118,9
Porto Alegre536,6112,9

Fonte: Instituto Nacional de Meteorologia (INMET)

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Com a mudança do clima, fenômenos climáticos extremos já estão acontecendo com mais frequência e com mais intensidade, por isso planos de mitigação e adaptação são considerados obrigatórios. O Rio Grande do Sul, segundo o INMET, foi atingido por chuvas persistentes e volumosas no mês de maio devido a uma ampla área de baixa pressão atmosférica que favoreceu a formação de novas áreas de instabilidade, juntamente com a formação e deslocamento de uma frente fria.

Os maiores acumulados foram nos municípios de Santa Maria com 213,6 mm e Soledade com 249,4 mm no dia 1º de maio; bem como Ibirubá com 196,4 mm e Serafina Corrêa com 176,6 mm, no dia 2 de maio.  Já entre os dias 11 e 12 de maio, áreas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina foram atingidos por temporais, devido a formação de um novo sistema frontal. Destaque para a chuva que caiu no dia 12 de maio em três municípios gaúchos: Cambará do Sul (154,6 mm), Caxias do Sul (139,2 mm) e Canela (125,8 mm).

Como o Lago Guaíba recebe as águas das bacias hidrográficas dos rios Vacacaí, Jacuí, Caí, Taquari-Antas, Sinos e Gravataí, toda chuva que caiu nos mais de 200 municípios que formam a Região Hidrográfica do Guaíba escorreu para Porto Alegre, inundando primeiro a região metropolitana, e depois Pelotas e Rio Grande, pois a água do Guaíba segue até o Atlântico pela Laguna dos Patos.  Por isso a governança ambiental deve passar necessariamente pelos comitês de gerenciamento das bacias hidrográficas.

“Apelamos às autoridades municipais, do Estado e da União, assim como à sociedade gaúcha e brasileira, para que reconheçam a importância de implementar todas as ferramentas previstas no Sistema Estadual de Recursos Hídricos. É imperativo apoiar os comitês de bacia hidrográfica, garantindo os recursos e a estrutura necessária para que possam desempenhar seu papel de forma eficaz”, pediram em nota conjunta publicada no dia 23 de maio os dirigentes dos comitês dos rios Caí, Gravataí e Sinos.

A nota defende a importância de reconhecer que “chegamos a este ponto devido à falta de aproveitamento e implementação plena do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, criado em 1994 após mobilização popular”. O modelo de governança das bacias hidrográficas por comitês de usuários, formando o que é chamado de parlamento das águas, nasceu no Rio Grande do Sul. Os comitês Sinos e Gravataí foram os primeiros do país, quando a luta ambiental tinha mais força e relevância no estado.

– Os comitês de bacia hidrográfica, com sua composição diversa e representativa, têm o potencial de harmonizar os interesses ambientais e econômicos, promovendo o desenvolvimento mais sustentável e a proteção dos recursos hídricos. No entanto, a falta de suporte institucional e financeiro dificulta o desempenho pleno das funções dos comitês de bacia hidrográfica. A cobrança pelo uso da água não apenas financiaria parte das ações necessárias, como também incentivaria o uso racional por parte dos agentes econômicos, reduzindo a pressão sobre os recursos naturais – diz a nota conjunta dos três comitês.

A Região Hidrográfica do Guaíba, a mesma que enfrentou a maior catástrofe hídrica da história do Rio Grande do Sul em maio passado, já teve um programa governamental – o Pró Guaíba – com financiamento internacional que perpassou três governos: Alceu Collares, Antônio Britto e Olívio Dutra. Mas não teve continuidade na gestão de Germano Rigotto. De lá para cá nunca mais se falou em gestão da região hidrográfica. A mudança do clima traz o planejamento ambiental de volta para a agenda pública.

– A chuva de inverno está diminuindo, migrando para os períodos mais quentes de forma concentrada. Atualmente estamos entrando na primavera com falta de água e excesso de chuva em poucas horas ou dias, causando intensas inundações e levando toda a área plantada rio abaixo. Do ponto de vista da mudança climática no Rio Grande do Sul, houve uma completa alteração do clima, e atualmente temos noites mais quentes, ondas de calor mais frequentes e mais longas – informou o climatologista chefe do Departamento de Geografia da UFRGS, Francisco Eliseu Aquino, em entrevista concedida à estudante de jornalismo Rayane Gonçalves semanas antes da enchente de maio.

Em dezembro de 2023, a emergência climática foi o principal assunto da 17ª edição do Unipautas, jornal criado em 2013 para publicar notícias e reportagens produzidas pelos estudantes de jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Nem poderia ser diferente em função do rastro de destruição deixado pelos ciclones extratropicais que assolaram o Rio Grande do Sul no segundo semestre do ano passado, potencializados pela incapacidade humana de respeitar os limites da natureza.

Se continuarmos falando e pensando no ambiente somente durante as enchentes, estiagens e ventanias, logo não teremos mais tempo de mitigar a emissão de gases de efeito estufa e de adaptar nossas cidades. O planeta mais quente já está gerando fenômenos extremos mais frequentes e intensos. A emergência climática é a nova situação em que nos colocamos no Rio Grande do Sul, por isso pensar no problema antes e depois das catástrofes é fundamental para a nossa sobrevivência.

Voltei do litoral norte na tarde do dia 16 de maio. Quando entrei no meu apartamento, que ficou com até um metro de água por dez dias, lembrei do final da minha tese de doutorado sobre jornalismo ambiental que defendi durante a pandemia: “Que o espanto, a indignação, o ativismo e o espírito de combate dos ecojornalistas sirvam de inspiração ao jornalismo brasileiro. Só assim o debate ambiental permanecerá em destaque na agenda pública, não apenas durante, mas também antes e depois das tormentas”.

  • O autor é Jornalista. Doutor em Comunicação. Criador do programa Gaúcha Ecologia na Rádio Gaúcha. Fundador da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental – RBJA. Doutor e mestre em comunicação e informação com pesquisas sobre o jornalismo ambiental brasileiro no PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde participa do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS). Como professor do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) de Porto Alegre (RS), trabalha com jornalismo(s) especializados(s), produção de conteúdo em multiplataforma, redação jornalística, jornalismo em áudio, televisão, documentário, teorias do jornalismo, teorias da comunicação, linguagens e relações estéticas, estágio supervisionado e trabalho de conclusão de curso. Também atua em extensão universitária e apoio à gestão acadêmica. Mais sobre o autor.

Leia também:

— Comitês das bacias hidrográficas dos rios Caí, Gravataí e Sinos lançam manifesto apelando para a implementação do Sistema Estadual de Recursos Hídricos

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